domingo, 19 de abril de 2009

Imaterial


Era uma vez um ser feito de bruma (porque não quero que meu personagem seja um homem ou mulher, nem um animal, inseto ou passarinho) esse ser como era de bruma vagava em um amanhecer eterno. Passava por todos os lugares, mas somente muito cedo, ele nunca parava, e acabava não vendo muitas coisas, perdia os detalhes, os períodos de maturação.


Via tudo e não via nada. Tudo tinha e não tinha nada. Cheio de conhecimento e tão desconhecedor. Ia a uma velocidade muito rápida para o amor, para apegar-se a outra coisa que não fossem as manhãs gélidas do inverno de frente para o Reno, as Pirâmides ao alvorecer, amava os lugares, mas não amava ninguém.


E o ser feito de bruma era feliz, porque geralmente os seres feitos de bruma são felizes. Ele viu, vê e sabe que verá muita coisa cruel, sim, por quanto passava em sua interminável correria, mas sabia dosar sua quantidade de altruísmo, era um ser feito de bruma feliz e equilibrado.


Um dia o ser feito de bruma,sem perceber,carregou junto em sua bruma uma folha de laranjeira que havia caído a esmo. Sem saber por que passou a sentir saudades, ele nem sabia o que era isso, até então nunca havia sofrido. Pensava sem cessar num campo com cheiro capim, todo verde, na terra escura, no laranjal, quase podia sentir o pólen minúsculo que se alastrava na época de floração das árvores, queria estar lá. Acontece que assim como chegou a folha novamente caiu, caiu da bruma e ficou no caminho. Acabou a saudade. O ser feito de bruma era novamente um ser tranqüilo, veloz, mas tranqüilo.


Certa ocasião uma lebre passou correndo através dele, com que deleite sentiu aqueles pêlos brancos e macios acariciarem seu vazio, o pequeno mamífero entrou na toca e o ser feito de bruma o seguiu. Encheu de bruma toda a toca do animal, viu seu ninho, seus filhotes e foi embora. Outra vez, seguiu um garoto de bicicleta, aquela risada alta e alegre, aqueles cabelinhos morenos, foi impossível se afastar. Acompanhou-o por várias ruas até sua escola, e quando o garoto ultrapassou a porta ele não parou, invadiu toda a escola, o saguão, as salas de aula, as quadras de esporte, o refeitório. E ali havia dúzias daquelas criaturinhas místicas, o ser feito de bruma ficou encantado. Porém, precisou partir quando a bruma começou a tornar-se tão espessa que as crianças começaram a chorar de medo do desconhecido.


O ser feito de bruma, fazia essas coisas de seres feitos de bruma. Quando deparava com algo que lhe chamava atenção ia atrás, observando, sentindo o cheiro e quando esquecia o que mesmo estava fazendo ali partia sem nenhum sentimento. Os seres feitos de bruma duram séculos, e muito antes dos homens aparecerem na face da Terra eles já estavam aqui. Eles não tem preocupações com a existência de deus, com a conta do telefone, ou com o futuro. Eles alimentam-se de umidade porque de bruma são. E quando morrem no lugar da bruma surge uma campo de tulipas que percorre quilômetros, quilômetros e quilômetros. A quem diga que a Holanda é um grande cemitério de seres feitos de bruma. De minha parte não posso concordar, pois nunca fui até a Holanda.


É possível que sua vida acabe sem ao menos você ter cruzado com um ser feito de bruma, lembre-se eles só podem ser vistos na alvorada, quando você ainda dorme. E a sorte de estar no trajeto de um deles não será veraz a menos que ele o julgue interessante, do contrario sua passagem será muito acelerada para que você possa percebê-lo.

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imagem: Naoto Hattori

Um comentário:

Tatiana Lazzarotto disse...

Eu acho que não o conheço. Deve ser por isso que minha vida anda tão seca, vazia de umidade. Nem olhos úmidos eu ando tido.
Sabe que eu gostei da historinha? Bjo, Sig